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Que incosciente?

8 Marzo 2016

1 – Por que o inconsciente? Ou por que a consciência?
O primeiro desenvolvimento psíquico, no recém-nascido e no bebê, foi estudado tanto pela psicanálise mais recente quanto por outras ciências psicológicas, especialmente pelas chamadas ciências cognitivas. Se compararmos alguns dados mais provenientes dessa matriz científica do que de outras, vão surgir algumas perguntas a respeito dos conceitos e das teorias que nós, psicanalistas, usamos. O objetivo desse trabalho é, portanto, oferecer uma reflexão sobre o que é, atualmente, o nosso conceito de inconsciente.

Freud parece partir da pergunta  “por que o inconsciente?” e, em retrocesso, através da consciência passa a explorá-lo. A psicanálise nasceu assim, “descobriu” o inconsciente, revolucionando o postulado, que imperava na psicologia da época, que a mente tivesse que coincidir com a consciência. Podemos aqui nos colocar uma primeira pergunta: até que ponto o método fundado por Freud condicionou a nossa concepção de inconsciente? Uma coisa é o método de indagação e uma outra coisa é o processo que é descoberto com tal método. Em outras palavras, a exploração, pelo método freudiano, da consciência, em retrocesso, com obstáculos, significa que devemos presumir um processo psíquico contrário? Um “fluxo”, como Freud preferia imaginar, que vai do inconsciente para a consciência?  E que a ela chegaria, se não encontrasse algo que o bloqueasse? E se esse “algo” não existisse, poderíamos supor que tudo chegaria a consciência sempre? A não ser que se postulasse, para remediar, a repressão primário? Creio que Freud e os primeiros psicanalistas se fizeram tais indagações e lhes deram uma resposta, mas quem sabe, hoje, seria oportuno refazê-las a luz dos novos conhecimentos adquiridos em um século de psicanálise.

Penso que o fulcro de uma atual reproblematização consiste em esclarecer melhor quais as modalidades, além das causas, pelas quais aconteceria a mencionada progressão, do inconsciente ao consciente, além de nos perguntarmos quanto do que observamos no desenvolvimento das crianças se mantém dentro da estrutura mental adulta, e que assim sendo se justifique a construção que dela costumamos fazer na análise. Mais detalhadamente, podemos colocar-nos as seis perguntas seguintes:

1)     O fato que exista uma foram de exploração, como a tradicional freudiana, ainda hoje fulcro das análises dos adultos, significa necessariamente que o percurso explorativo em retrocesso corresponda  a um processo psíquico contínuo que devemos conceber como procedente do inconsciente para a consciência?

2)     Se pensamos que assim é, não deveríamos rever melhor as razões – ou, ainda melhor, as causas – pelas quais postulamos uma dinâmica psíquica que procede do inconsciente?

3)     Este inconsciente reconstruído através da nossa via de exploração é aquele que verdadeiramente regula a conduta e o desenvolvimento do indivíduo?

4)     Quem sabe hoje não temos outras vias de exploração, além das tradicionais análises dos adultos, que nos permitem observar mais diretamente, em status nascendi, este inconsciente? Refiro-me aos vários procedimentos de observação oferecidos pelos novos settings psicanalíticos da análise de grupo, da análise de crianças e, mais ainda, das observações psicanalíticas da relação gestante/feto (ecografia) e mãe/ recém-nascido (observação de bebês).

5)     Estas outras vias de exploração levam-nos à mesma concepção de inconsciente que herdamos da tradição psicanalítica?

6)     Até que ponto tomamos como intrínseca à natureza “psíquica” certas estruturas – como as que encontramos nos nossos pacientes “tradicionais” – ao invés de considerarmosse, como, quando, ou mesmo não teriam sido elas estruturadas durante o primeiro desenvolvimento infantil?

Freud explica a “progressão vindo do inconsciente” com a teoria da libido: o fluxo energético encontra o obstáculo da repressão, e este parece, mesmo com distinções, ligado sobretudo à frustração imposta aos instintos pela realidade. Este último aspecto evidencia-se mais em alguns epígonos de Freud. A contra-energia da repressão bloqueia o fluxo, a descarga pulsional. Os instintos alcançam a consciência somente através de “derivados”.

Hoje temos certeza deste modelo? Temos certeza que “seja” assim?  Ou, pelo menos, de que esse seja o melhor modo de entender como se desenvolve a mente? Se dermos valor explicativo a esse modelo – valor explicativo de uma teoria científica – supondo que seja realmente assim, devemos sem dúvida responder que não. As supostas cargas energéticas que Freud esperava fossem descobertas pela bioquímica do futuro (Freud, 1882-95; p.347; 1901; p.394 sg.; 1905, p.479 sg,; 524 sg.; 1906, p.223 sg.; 1914, p.448; 1915, p.21; 1915-17, p.478) não se comprovaram. Se, por outro lado, esquecendo a veracidade explicativa, limitamos o valor da teoria a um simples “modelo”, válido como tal somente em nível descritivo e heurístico, ainda aqui temos algumas dúvidas. Muitos autores refutam explicitamente a utilidade do modelo energético e, com isso a teoria estrutural de Freud, a “Bruxa Metapsicologia” (Fabozzi Ortu, 1992; Imbasciati, 1998 a, b; Klein G., 1976; Gill, 1976; Eagle, 1984).

Alguns propuseram uma psicanálise sem psicodinâmica (Schaefer, 1975). Por outro lado, as atuais diretrizes, tanto as inspiradas em Bion, por exemplo, quanto aquelas geralmente relativas à análise infantil ou às patologias graves, nos parecem procedentes, sem necessidade de nos referirmos ao modelo da pulsão.

Não podemos então inverter a pergunta inicial de Freud? Por que razões devemos nos perguntar “por que o inconsciente?” Quem sabe supomos que a mente deveria ser toda consciente? Isto era o que supunham os contemporâneos de Freud, e por esta razão, hoje histórica, ele fez bem em colocar o problema a partir dessa pergunta. Hoje porém, no atual estado das ciências psicológicas, quando ninguém mais defende a primazia da consciência, não poderíamos, de forma mais útil, nos perguntar “por que será que existe a consciência?”

Com o objetivo de ilustrar a utilidade da pergunta, vamos considerar mais detalhadamente o desenvolvimento infantil. Quando, nesse desenvolvimento, pode-se começar a falar de consciência? Só progressiva e lentamente. A concepção energética freudiana do inconsciente parece nos levar a pensar na consciência como uma dimensão categorial (a não ser para depois falar de pré-consciência) mais do que como um continuum. A concepção tópica persiste e nos encanta pela sua simplicidade, mas talvez seja desviante. A criança torna-se consciente muito lentamente, no segundo ano de vida, paralelamente à linguagem. Mas não estamos de forma alguma seguros de que isso aconteça com o surgimento das linguagem. Certamente a simbolização verbal parece abrir caminho para um primeiro conhecimento de si, mas talvez possamos encontrá-la até antes, e depois, independentemente da linguagem.

Não seria melhor usar o termo “dar-se conta” * (Imbasciati, 1989), ao invés de consciência, com todas as suas ambigüidades – a exceção de consciência moral –  e a áurea da antiga psicanálise?

Quando se entende que a criança “entende”, o que ela adquiriu? Ela possui “símbolos?” Podemos chamá-los de proto-símbolos. Quando, por exemplo, a criança se dá conta que existe o objeto que foi escondido dela, tem uma representação disso? Poderíamos pensar que ela esteja “consciente”? E podemos chamar a isso de “representação”?  Certamente a representação que a criança tem do objeto desaparecido (os psicanalistas falam, em termos afetivos e em épocas mais precoces, de “objeto ausente”) não é igual àquela que tem dele o adulto.

Voltemos mais atrás ainda. Quando a criança aprendeu a chamar a atenção com certos lamentos, ou a entender o chamado do adulto, o que ela adquiriu? Uma representação sonora? Podemos chamar a essa representação de “consciente”? Se acompanhamos o desenvolvimento infantil a consciência nos aparece como um verdadeiro continuum, desde uma dimensão zero, difícil de estabelecer (ao nascer ou antes ainda?), por milésimos, até se chegar a algo que claramente revele o caráter consciente. Não nos parece uma qualidade do psíquica, mas antes uma tonalidade, uma cor, por assim dizer.

* Nota do tradutor: em inglês, awereness.

Antes de prosseguir, porém, falando do recém-nascido, é necessário esclarecer o que se considera representação.

2 – Representação e processos de simbolização

Geralmente atribuímos ao termo "representação" o conceito que se refere à que pode ter o adulto: representação consciente, ou pelo menos, que possa ser chamada de volta à consciência, adequada ao objeto real, adequada à específica sensorialidade (visual, sonora motora, etc). Tal conceito é idôneo aos usados para as simbolizações que adquire um recém-nascido ou uma criança? Quem sabe estas são homologáveis àquelas, mas de maneira alguma, iguais. As representações da criança nunca são adequadas à realidade e, com muita freqüência,  estão misturadas nas várias sensorialidades confundidas entre si, sendo mais comparáveis às sinestesias obtidas de forma experimental do que com percepções em seu sentido verdadeiro. Também é assim a percepção: na criança – mas também no adulto, como a partir dos anos 30 os experimentalistas demonstraram – ela nunca é adequada. A percepção não é um processo automático ligado ao funcionamento neuro-sensorial. Os estudos de perceptologia indicam como esse é um processo “ativo”, que pressupõe funções verdadeiramente mentais, e que são adquiridas: particularmente a aquisição de uma estrutura funcional que seja capaz de “ler” o imput neural em relação a engramas  de reconhecimento; e ainda esses últimos devem ser adquiridos. Voltaremos a esse tema mais adiante

Os vários autores, psicanalistas e não psicanalistas, definiram de forma diferente a representação. Para uma resenha sobre o assunto vide Fraiberg (1969) e Taylor (1963). Nesse trabalho farei alguns breves comentários a esse respeito.  Werner e Kaplan (1963), por exemplo, falam de proto-símbolos, que “apresentam” significados, e de simbolizações verdadeiras, que “representam” tanto objeto quanto significados. Os psicanalistas geralmente insistem em ressaltar que os “objetos internos” não são representações de algum objeto real. Money Kyrle (1968) porém, corretamente e de forma pioneira, ressaltou como os objetos internos servem para a criança representar o mundo. Esses, pois, têm um valor de representação, e portanto, cognitivo. Existe um continuum entre os objetos internos e as verdadeiras representações? Vide a respeito disso meus trabalhos anteriores (1991, 1994, 1998a). Sempre com alguns exemplos, Blum (1978) enfatiza como os objetostransicionaisconstituem uma fase inicial da simbolização: eles são a apresentação dos objetos internos, e ao mesmo tempo, percepção – e representação – de objetos reais. As representações pré-simbólicas tornam-se, em seguida, representações. O objeto transicional  é um objeto percebido e representado como real e, simultaneamente, fica inscrito na mente como se fosse um objeto interno. Seria então uma transição entre as representações pré-simbólicas e uma representação efetiva? Então o objeto interno se comporta como uma proto-representação? Existe um continuum entre objetos internos, objetostransicionais – mesmo aqueles menos evidentes e menos estudados – e as representações adequadas à realidade?

A maior parte dos autores, psicanalistas, define a representação baseada no fato de que a criança vive o objeto como se estivesse separado do “eu”. Mas isto não implica, por si só, em uma representação sensu strictiori, como no adulto, mas refere-se antes a algo que mais facilmente pode ser visto em termos afetivos: mais precisamente como “vivência”. Ate que ponto, porém, o “vértice afetivo” oferece um esclarecimento útil? Podemos afirmar que a vivência seja seguida da representação? Mas não são justamente essas vivências que servem para a criança representar para si o seu mundo? Obviamente de maneira bastante distorcida – basta pensar nas situações persecutórias da posição esquizo-paranóide – de como consegue o adulto representar isso para si. Então, são ou não são representações? Pode-se da mesma maneira, falar de representações, quando a criança consegue “representar para si mesma” aquilo que chamamos de objeto ausente? Quando se fala em representações de objetos, o que se entende sobre a representação no sentido mais tradicional? Quando Anna Segal fala de equações simbólicas – ao invés de equivalências – subentende-se que diferentes tipos de representações?

Voltemos ainda ao nosso recém-nascido, mais aquém no seu desenvolvimento. Quando ele “reconhece” um objeto que lhe é mostrado, parece ter uma representação visual que lhe permite esse reconhecimento. É uma representação efetiva? Este traço mnêmico é adequado às qualidades formais do objeto? Ou, quem sabe, se trata de um tipo de representação do objeto, mas totalmente inadequado para aquelas formas, e portanto difícil para o adulto imaginar o quanto é disforme e lábil. E ainda: quando uma criança mostra  que se tornou capaz de agarrar – intencionalmente, não pelo reflexo de preensão –  e continuar segurando um objeto, o que ela adquiriu? Digamos que um esquema motor. Piaget  falou da inteligência sensoriomotora. Podemos chamar esse algo que a criança adquiriu de representação? Independentemente do fato de a criança ter ou não uma representação “daquele” objeto, se há de convir que, ainda assim, ela adquiriu traços de movimentos coordenados necessários para agarrá-lo. Esses traços de um pattern motor são passíveis de serem chamados de representação? Com certeza tais “protorepresentações” não podem ser consideradas conscientes.

Ainda, quando a criança aprende a controlar o esfincter, o que está adquirindo? Quando aprende a engatinhar, não seria talvez porque estabilizou na memória um esquema seqüencial das coordenações de vários setores musculares que antes  não podia usar? Esta é uma representação? Obviamente não é consciente. Todo o movimento da motricidade procede através de aprendizados. As vias neurais já estão todas maduras nos primeiros dias após o nascimento mas não é essa maturação que determina o desenvolvimento: este ocorre através de um aprendizado funcional. Não é por acaso que é chamado de psicomotor. Portanto é necessário que a mente construa dentro de si os traços correspondentes. Esses também podem ser chamados de representações?  Além disso, nas primeiras semanas de vida, quando o recém-nascido aprende a seguir o olhar dos outros, o que adquiriu ele?

O excursus  que eu prospectei sobre os precursores da representação entendida sensu strictiori, o que isso nos diz isso a respeito do surgimento do “dar-se conta” e, em termos de uma nova sistematização teórica, a respeito do continuum entre inconsciente e consciência? As observações de bebês e de crianças normais não parecem indicar travas ou bloqueios, concebidos a partir do modelo da repressão, que assim se oporiam à vis naturalis – via natural – de um desenvolvimento baseado em uma “natureza”  (chamadas de instinto ou pulsão?); ao invés disso, dificuldade, no caso, para progredir utilizando a experiência na criação de novas funções, de novos símbolos! Ou de novas funções simbolopoiéticas, isto é, funções que permitam processos de simbolização ainda mais articulados. A inscrição na mente de tais funções, por si só, já não é um novo símbolo? As dificuldades que observamos no desenvolvimento  aparecem mais como dificuldades “no” desenvolver-se do que dificuldades “para” o desenvolvimento; e um desenvolver-se de um certo modo, que eventualmente definiremos como patológica, mais do que de um outro, o qual, na imensa variabilidade dos indivíduos, julgamos que faça parte da normalidade.

Vemos então que o que era inconsciente, ou  melhor, indiferenciado, parece articular-se progressivamente, assumir , poderia-se dizer, maior clareza ou melhor adequação à realidade, ou seja, à possibilidade de desenvolver “operações inteligentes”. Tudo isso, visto dentro de uma perspectiva  anterógrada, por aprendizagem, ao invés de uma retrospectiva análoga àquela que “descobre” o desenvolvimento inconsciente partindo da introspeção adulta consciente. Então, o que é a consciência? Por que e como se chega a ela? Ou melhor, com que modalidades, e variabilidades entre os indivíduos, se chega ao que o  adulto experimenta na forma de introspeção consciente?

Vejamos ainda alguns percursos do pensamento na criança com menos de um ano. Quando ela aprende, por gestos ou mímica, a expressar algo, o que  adquiriu ela? Uma espécie de representação, tanto do seu estado interno quanto de uma forma de exprimi-lo em um pattern– motor, sonoro – que possa ser “lido” pelos cuidadores? A propósito disso existem todos os estudos de Brazelton (1990) e outros, ligados à psicanálise, de Lichtenberg (1989). Quando a criança aprende as conexões entre as coisas (objetos, e depois acontecimentos), parece adquirir alguma representação precursora da causalidade, algo que antecede a aquisição verbal dos verbos: portanto, uma representação pré-verbal, não só dos objetos – por exemplo, no reconhecimento destes – como dos verbos, ou seja, das conexões entre as coisas. A ação é primeiramente concebida como simples conexão. E esta, quase sempre é reversível: como e sou comido. Só sucessivamente se adquire o sentido da transitividade, isto é, de uma capacidade de distinguir o ativo do passivo. Sabemos que isto está correlacionado com a separação “eu”/ objetos.

Como chamamos todos esses “símbolos”: esquemas adquiridos? Patterns? Representações? Funções de simbolização?

É necessário refletir como, em geral, pensamos na simbolização somente para os estados mais evoluídos e não para certas funções primitivas que nos parecem mais intrínsecas – quase de forma ontológica – à mente, antes que adquiridas. Por exemplo, quando Bick nos fala (1968, 19750) da necessidade de adquirir uma idéia bastante elementar de um espaço para poder sentir-se contido e assim conter uma primeira idéia de um “eu” – e depois, de uma “mente” –  não estaria nos falando de uma primeira aquisição simbólica? Paradoxalmente trata-se de uma aquisição que permitirá uma primeira simbolização de um “eu”. Quando Bleger (1967) fala de “núcleo aglutinado”, nos introduz à discrição de uma experiência muito primitiva – anterior à posição esquizo-paranóide – sobre as quais se estão, laboriosamente, construindo as bases para as primeiras simbolizações.  A indiferenciação, da qual ele e outros autores nos falam, com outros termos e conceitos, nos diz que, para que possa nascer um aparelho mental, se faz necessária uma primeira diferenciação de um “dentro” e de um  “fora” – a qual depois permitirá aquela entre o “eu” e um “objeto”. No entanto, essa primeira diferenciação, que ocorre em um estado indiferenciado, não é ela mesma  uma aquisição que deveríamos chamar de simbolização?

Assim também as descrições de Winnicott a respeito das transformações do holding materno em um “espaço” que é presumido como próprio – primeiro corporalmente e depois mentalmente  – pela criança e que lhe servirá para sentir-se contida, tendo limites – e que será sentido depois em termos de um “eu” – transformações essas que nos falam de primeiras aquisições que, ainda que chamemos de pré-simbólicas, não podem ser excluídas daquilo que, com um termo mais amplo, chamamos de simbolopoiese.(construções de processos simbólicos). Em geral, os estudos de psicanálise infantil (gostaria de citar aqui os trabalhos de Ferro, 1966 e de Vallino, 1990) mostram-nos a evidência de uma falta  – patologia do déficit – de alguma capacidade bastante elementar, a semelhança do que ocorre no início da vida mental quando não existiam ainda essas diferenciações, as quais são pré-requisitos para que, sobre eles, possam se desenvolver os processos simbólicos. No entanto, não são essas diferenças primárias, elas próprias, aquisições de  funções provenientes da experiência (corpóreo-relacional), ou seja, os próprios processos de simbolização primordial? Quantas vezes chamamos de cisão uma ainda não ocorrida indiferenciação  ou integração? Este uso impróprio do termo cisão não seria talvez um uso indevido de um modelo “adultomorfo”?

Para concluir essa questão, aquilo que aprendemos com a psicanálise infantil, com a observação de bebês, com a observação do feto (Negri, 1993), não estaria nos dizendo algo a respeito da representação em uma época anterior àquela em que se pode falar de objetos internos? Além disso estamos acostumados a considerar que a representação dos objetos segue, no processo evolutivo, a formação do objeto interno. Dentro desse enfoque, o que é feito da concepção originária de inconsciente? E que sentido teria falar de pulsões e repressões?

3 – A cadeia de significantes

Qualquer que seja o modo que queiramos chamar todas as diferentes simbolizações das quais falamos brevemente, começa a se delinear um modelo de base: uma aprendizagem –  já que entendemos que seja através da experiência e não um imprimir-se passivo dos acontecimentos  na mente (1); e acrescentamos: aprendizagem relacional – produz uma aquisição que torna possível uma posterior e específica aprendizagem – condicionada pela anterior – ; ou seja, uma função simbolizadora permitindo conceber uma outra posteriormente. Como chamamos estas aquisições? Se a palavra representação for restrita, podemos chamá-las de significantes: começa a se delinear portanto uma cadeia, progressivamente articulada e ramificada – talvez em forma de “rede” – de significantes. Podemos chamar-lhes de vivências mas creio que com tais termos perdemos de vista que estes funcionam como significadores – mais precisamente significantes – para significar a realidade, ou melhor dizendo, funcionam como unidades de leitura que permitem à estrutura funcional uma “leitura” verdadeira –  isto é, possuidora de um certo significado –  da multiplicidade dos inputs colhidos e veiculados  através das vias sensoriais; cabe acrescentar, uma leitura que, em função  da qualidade das unidades de leitura significantes, que a estrutura funcional possui naquele dado momento; leitura que portanto não corresponde necessariamente ao que chamamos de leitura do real. Por outro lado, sem alguma leitura, feita por qualquer significante, os inputs permaneceriam sem significado algum; e não poderiam nem ao menos serem memorizados. Os potenciais ativados nos receptores se perderiam na rede neural.

Muitos autores (não psicanalistas) falam da aquisição de esquemas cognitivos.  Penso que poderíamos chamá-los também de proto-representações, para unificar o conceito de aquisição de esquemas funcionais com o de aquisição de representações que representam os objetos da realidade. Naturalmente usando o termo representação, devemos levar em conta que vêm a ser representados, na mente, não apenas formas de objetos concretos, mas formas de operações; – esquemas operativos, ou cognitivos, como queiramos chamar; talvez pudéssemos dizer até sinais funcionais como “operações inteligentes” – ; salvo nos referindo aos traços de uma funcionalidade avaliada como patológica. Por todas essas aquisições é necessário de qualquer forma pressupor traços mnêmicos correspondentes (conforme item 1). Tudo em forma de uma progressão, através de que cada termo permite a constituição do posterior. Constituir ou construir?

Prefiro o segundo termo (1998), para ressaltar o processo ativo, de autocrescimento das funções mentais: mente como construção progressiva de símbolos cada vez mais complexos;simbolopoiese, no sentido de que a aquisição de um símbolo torne possível a gênese – apoiesis – da  posterior, e condiciona a qualidade dela. Dentro desse enfoque, como colocamos o inconsciente? E a consciência? Ou melhor, como os concebemos?

Quando falamos de objetos internos, onde os colocamos no enfoque acima? Diz-se que os objetos internos não são representações de algum objeto externo: porém esses têm um valor representacional; servem para a criança representar “de algum modo” o mundo; o seumundo. Penso que seja muito pouco heurístico  catalogar como “afetivos” os objetos internos, separando-os dessa forma daquilo que entendemos das representações enquanto funções cognitivas. Não podemos mais, no atual estado das ciências psicológicas, separar afeto de cognição, a não ser em termos de uma reificação da concepção freudiana de libido e de pulsão, consideradas como “energia” e portanto quase vistas como “substância”, afetiva mais precisamente, que distinguiria o afeto da cognição, e que interferiria em um desenvolvimento, cognitivo, por seu lado preestabelecido no biológico. Seria esta talvez a concepção subentendida no pensamento de Freud? Um desenvolvimento cognitivo ligado ao biológico, modulado pela energia pulsional, e dependendo de que a experiência do real frustre ou permita a  descarga instintiva?  Ou talvez seja esta uma falsa concepção pós-freudiana que se difundiu entre os psicanalistas?

Penso que deveríamos esclarecer melhor as descobertas dispersas, mas muito numerosas, que se acumularam em sem anos de psicanálise: esclarecê-las em uma sistematização mais orgânica, assim como confrontá-las com as de outras ciências psicológicas. A experiência não é exatamente um filtro em termos de cilada feita pela realidade para o fluxo biológico: a experiência é uma ocasião que permite uma organização dos inputs  numa “construção” de estruturas mentais. Aprender através da experiência significa que um conjunto de funções, adquiridas em um certo momento (2), permitem um certo tipo de aprendizado, através da própria experiência. A grade bioniana está de acordo com uma concepção de uma progressiva construção de funções. E provavelmente podemos presumir que a diacronia do desenvolvimento infantil permaneça e se repita na sincronia do funcionalmente mental evoluído. A consciência se prospecta então como uma dimensão que surge gradualmente, em direção ao terminal, por assim dizer, dos processos simbolopoiéticos.

O inconsciente então estaria nos significantes mais disformes, menos diferenciados, lá onde podemos imaginar menos ramificada e menos diferenciada a articulação das diferentes cadeias simbólicas. Se no entanto consideramos útil considerar este modelo, de umasimbolopoiese progressivamente diferenciada, articulada, ramificada, desde significantes mais disforme a outros com “mais formas”, configuramos o inconsciente como a  própriasimbolopoiese, pelo menos na maior parte de sua extensão: podemos então nos perguntar quanto esta palavra – inconsciente – não poderia e não deveria ser reformulada.

É apropriado usar a palavra inconsciente como substantivo? É útil usá-la  como adjetivo qualificativo, ou qualitativo? É oportuno usá-la com tanta freqüência, quase deus ex machina como, às vezes, fazemos para indicar os processos internos mais diferenciados? Talvez mais primitivos? Não seria mais útil abandonar termos como “vivências” (primárias), e mais simplesmente indicar “processos”, “funções”, “engramas”, ou outro? Não se prospecta, no enfoque apresentado, uma nova visão do inconsciente?  Ou melhor, não há mais a necessidade de ressaltar, como nos tempos de Freud, o não dar-se conta do mental. Devemos portanto nos perguntar sobre como melhor conceber e descrever, de um lado, o desenvolver-se de uma mente, e do outro, o “dar-se conta”. Ou melhor, quanto e como é mais útil descrever, no desenvolvimento, essas características e esses fenômenos, que parecem fazer o indivíduo se aproximar de o que até agora denominamos consciência. Creio que haja  muito a ser perguntado, a respeito dessa característica tão específica do ser humano; e muito provavelmente  a ser reformulado, no que diz respeito a uma melhor compreensão da estrutura variável entre os indivíduos, com a qual nos confrontamos na clínica, a respeito da capacidade  do sujeito de  ter acesso à sua parte interna.

  1. Traços mnêmicos do afeto

O que é então, o inconsciente freudiano? Que conceitos e termos nos são hoje mais úteis? A que inconsciente estamos mais habituados na profissão? Àquele concebido por analogia ao mundo das “paixões” do adulto, indagadas pelo vértice retrospectivo da primeira psicanálise? A análise é arqueologia ou construção? Freud já se colocara esse problema. Se a análise é construção, deveríamos considerar não apenas a re-construção que pensamos fazer no trabalho analítico, mas a construção com a qual foi construída originalmente aquela mente. Quem sabe a teoria energética-pulsional nos transtornou. O inconsciente que vemos nas crianças combina com esse último enfoque?  Especialmente em crianças com menos de um ano de vida.

Falemos de angústias, mais amplamente de afetos: o quanto usamos esses termos, tirados da clínica de adultos, de maneira imprópria? O conceito de afeto é tirado de uma psicologia da consciência, postulando-se depois o afeto inconsciente. Em um velho mas interessante artigo que apareceu no International Journal, Pulver (1971) ressaltava que para Freud “affects must be conscious”: o afeto inconsciente é um conceito que Freud derivou por necessidade lógica (analogia indébita da teoria com a clínica?) do conceito de pulsão, assim como o inconsciente está para Freud indissoluvelmente ligado ao conceito da repressão (repressão primária, chega a postular) e ao conceito de energia.

De qualquer forma que se queira ver Freud, quando nós falamos de afetos inconscientes fazemos uma inferência: do consciente (do adulto) à algo que não o é; e que, no caso, com a análise, se tornará. O que distingue o afeto de outros processos mentais é somente a diferente tonalidade, afetiva mais precisamente, com a qual a introspeção do adulto vive alguns dos seus processos mentais em relação à outros, que se apresentam, ao invés disso, mais acéticos e simples, como “cognitivos”. Se isto ocorre na consciência, o que ocorre por trás do “dar-se conta” é realmente de uma natureza distinta e individualizável como afetiva? Se a inferência pode ser útil na clínica de adultos, o quanto porém é oportuno usar tais conceitos e termos em relação a crianças? Sobretudo com menos de um ano de idade.  O que são, ao invés disso, nas crianças pequenas, esses “afetos”?  Talvez tenham razão aqueles autores (Plutchick), 1980) que os chamam de esquema cognitivo primário. O que sabemos, nós adultos, do que uma criança pequena experiencia uma criança de poucas semanas para indicá-lo com o termo afeto? É uma analogia adultomorfa, da qual só sabemos a respeito por inferência: melhor então ater-se exclusivamente a estas inferências, e no caso, aperfeiçoa-la. E mais ainda: por que dizemos que a criança “experiencia”? Esse termo se refere a um “dar-se conta” que o recém-nascido ainda não possui.

Certamente aquilo que chamamos de afetos são o modo como a criança se orienta no mundo. Têm, então, a ver com a representação? Especialmente, se usamos este último termo em sentido amplo, ou se usamos (como, há tempos, já faço em meus trabalhos) o termo proto-representação? Ou se ressaltamos o valor o valor representacional dos objetos internos (1991). Pode-se então falar de afetos, e igualmente de objetos internos em termos de sinais mnêmicos? Se o afeto é ligação, se o objeto interno é gerado na relação, isso quer dizer que ambos são têm a ver com o aprender através da experiência. São portanto aprendizados: portanto terão um “registro” (traço). O afeto aprendido?! O traço do afeto?! O objeto interno aprendido?! Isso pode com freqüência espantar muitos analistas. Se este espanto surge, devemos nos interrogar a respeito dele, como, já há muito tempo nos têm ensinado Bion e muitos outros autores.

Existem ainda velhos preconceitos a respeito de que é um traço mnêmico. Um traço não é uma impressão fiel da realidade externa na interna, mas antes alguma modificação das possibilidades funcionais que ocorre na estrutura mental após um aprendizado.  Tal conceitualização, em sintonia com estudos atuais das ciências cognitivas, combina com o fato que a memorização ocorre segundo um código bioquímico, em contínua metabolização.

As perguntas feitas recentemente sobre o modo de conceber os afetos também podem ser usadas no que se refere à angústia; e às “fantasias”. Até que ponto, ao  concebermos a “phantasy” kleiniana, transpomos impropriamente a experiência do “dar-se conta” do adulto? É sobre o modelo da “fantasy”, a imaginação, que se postulou uma “phantasy”. Até que ponto este conceito está, além disso, impregnado demais de uma teoria? Não seria mais útil usar, aqui também, outros termos? Por exemplo, proto-representações, ou esquemas cognitivos, esquemas operacionais,  modos de representar conexões entre objetos internos? Nesse caso porém deveríamos nos acostumar a conceber esse mesmo objeto interno de modo diverso; não tanto como objeto de afetos (os quais sendo afetos inconscientes seriam somente derivados lógicos da postulação teórica das pulsões), mas enquanto representações sui generis, ou proto-representações, diferente de qualquer representação de objetos reais, e tendo, mesmo assim, na funcionalidade da mente um importante papel representacional.

Sou levado a pensar que a focalização  dos psicanalistas no aspecto afetivo dos objetos internos, sem uma atenção devida ao seu valor de representação, possa ser devida ao fato que por longo tempo – talvez até demais – a nossa ancoragem na teoria das pulsões tenha sido paralela à persistência (inconsciente) de uma idéia da afetividade como “algo” substancialmente diferente dos processos mentais que conduzem à percepção, à representação, à aprendizagem, à memória, em suma, à cognição. Essa persistência não seria, talvez, devida a uma simplista e indevida analogia com a experiência de “dar-se conta" do adulto? (3) Que o objeto interno seja objeto de amor (ou, pelo menos, de afeto) é conseqüência, não causa, do fato de que este seja importante na elaboração dos processos mentais; ou seja, na simbolopoiese entendida como descrita aqui.

É por uma simbolopoiese que se cria a capacidade de amar, não por alguma suposta força natural ou por uma conseqüência que parece lógica somente no adulto: trata-se de uma simbolopoiese muito mais  complexa do que a que estamos habituados a conceber, que faz com que uma proto-representação do objeto se torne objeto de amor. Em certos conhecimentos errôneos (misconceptions) aos quais estamos habituados, entra em jogo, a meu ver, uma excessiva ancoragem a uma teoria histórica, sob a  forma de um conluio, com prejuízos para a psicologia do século passado.

Pensar que o objeto interno seja , por si só, um objeto de amor (ou, pelo menos de afetos) significa concebê-lo projetando aí a realidade do objeto externo (a mãe adulta que ama seu filho) que geralmente está no centro da experiência que o origina. No entanto o amor, no recém-nascido, ou outro afeto, são vivências que nós o atribuímos “adultomorficamente”. É discutível chamar de afeto aos acontecimentos mentais que ocorrem no recém-nascido. Ao contrário, a pregnância do objeto interno é dada pelo fato de este ser uma primeira construção mental (endopsíquica, embora gerada pela experiência) de fundamental importância para todos os sucessivos processos simbolopoiéticos: é a “causa” deles. Daí ser importante que o analista possa imaginá-la. Atribuir a ele a etiqueta de “afetivo” implica, além do adultomorfismo, o risco de colocar em segundo plano o papel cognitivo do modulador para a construção das sucessivas estruturas mentais, inconscientes obviamente. Que depois o objeto interno da criança se torne a base sobre a qual a criança construirá sucessivamente a sua capacidade de amar é algo que faz parte da progressiva simbolopoiese, mas não é uma qualidade intrínseca do objeto interno; e que esse se torne a base para cada outro acontecimento afetivo do adulto  obedece ao princípio geral que cada função adulta se apoia em operações protomentais, aquelas mesmas que se fazer “sentir” quando o adulto “sente” afetos. (4)

Cada conceito, e cada termo, que a ciência com o passar do tempo vai formulando, está necessariamente ligado à, ou está pelo menos impregnado de, alguma teoria: um tal grau de “parentesco” deve no entanto ser suficientemente elástico para permitir aos cientistas de vislumbrarem novas e mais úteis teorias, abandonando as teorias velhas. Em cada ciência as teorias mudam. Ficam as descobertas, e também o método, que no entanto se transformam e se aperfeiçoam.  A distinção entre descobertas, método e teoria, que aqui não caberia retomar (sugiro meus trabalhos de 1993, 1994, 1998), é de vital importância para o progresso de uma ciência. Sou da opinião que em psicanálise, devido ao fascínio da grandiosa obra do mestre, os psicanalistas ficaram excessivamente ligados a sua teoria e, em conseqüência, impedidos de desenvolverem o  método e incrementar as descobertas, além do que, de formular novas teorias que, por sua vez, favoreceriam quer o método, quer as descobertas. Uma teoria não é nem verdadeira nem falsa: é somente útil em um determinado período de cada ciência. Um apegar-se excessivo às teorias já formuladas impede a pesquisa. O quanto os psicanalistas ficaram prisioneiros da teoria energético-pulsional? O mesmo poderia ser dito a respeito de outras teorizações que se sucederam, como por exemplo, certas formulações kleinianas.

Se esclarecermos algumas ambigüidades de conceitos,  certas diferenças no uso dos mesmos termos, e seus referenciais teóricos, poderemos melhor entender clinicamente certos fenômenos, ou acontecimentos, mentais, que poderiam ter estado obscurecidos pelo uso não claro dos conceitos ou dos termos. Por exemplo, podemos entender melhor, formulando conceitos novos e abandonando (decisivamente!) os velhos, a essência de certas vivências infantis, dos recém-nascidos, que permanecem escondidas, mesmo no adulto. Assim, Bollas, (1987, 1992) introduziu o conceito do “conhecido não pensado” e o de “estado de ser”, para nos fazer entender melhor determinadas situações clínicas, dos adultos, com freqüência relacionadas à patologias, se não graves, pelo menos pouco acessíveis à análise: sendo tais análises ainda desprovidas de instrumentos idôneos. Muitos autores ressaltaram como se pode individualizar uma patologia proveniente do déficit  em contraposição à patologia clássica, proveniente do conflito (poderíamos nos perguntar se em uma nova visão, como a que estou pesquisando, o conceito de conflito conserva ainda a importância que lhe demos) e descreveram estados mentais “assimbólicos” (ou pouco simbolizados) e, portanto inefáveis, não exprimíveis com palavras as quais, nos adultos, descrevem os afetos. Esses são portanto difíceis de serem captados pelo analista, a não ser que ele afine sua capacidade de viver e de lidar com a contra-transferência. Talvez acontecimentos mentais, como aqueles dos poucos exemplos acima mencionados, poderiam ter sido melhor captados, se contássemos com um vocabulário técnico menos equivocado, com uma referência mais clara dos conceitos e teorias, permitindo assim uma maior flexibilidade em relação aos esquemas teóricos seguidos até então. Citei Bollas mas muitos outros autores poderiam ter sido citados a propósito disso: por exemplo, Bleger (1967) e o próprio Bion.

Dentro desse esquema, o quanto atrapalha a teoria tradicional do inconsciente? Os conceitos de Bollas aqui mencionados, por exemplo, poderiam ser enquadrados na visão tradicional do inconsciente e da repressão? A meu ver não, embora, ao invés disso, sejam melhor captáveis no esquema do desenvolvimento simbolopoiético que estou tentando descrever.  Note-se aqui, como Bollas também afirma (1992 p. 72 ed. italiana) que temos necessidade de uma “teoria do ato de receber” ao invés de uma teoria da repressão, ou seja, que se faz necessário conhecer as modalidades com as quais as experiências são recebidas a fim de serem elaboradas estruturando o inconsciente; e que, com relação  ao “conhecido não pensado”, devemos nos habituar a considerar, nas análises, mais do que os bloqueios e as repressões, a necessidade, intrínseca dos processos inconscientes, de “eludir a uma consciência prematura” (p.97).

Talvez sejamos prisioneiros das teorias e de conceitos que além de não serem mais úteis, são ainda paralisantes no que diz respeito ao nosso acolhimento dos progressos conseguidos pela psicanálise nos últimos cinqüenta anos. Conceitos, além disso, que hoje se encontram superados em relação ao progresso das outras ciências psicológicas. Não existe somente a psicanálise, mas pelo menos umas trinta disciplinas psicológicas diferentes que, juntamente com as neurológicas, fizeram enormes progressos. Já apontei para os prejuízos em relação ao conceito de traços mnêmicos, e acenei brevemente ao da percepção que aqui me parece útil retomar.

Permaneceu (talvez entre os psicanalistas?) o costume de considerar a percepção como um processo automático, dependente dos órgãos sensoriais e também do amadurecimento neurobiológico. (5) Tais costumes se traduzem hoje em um verdadeiro prejuízo anti-científico. A percepção parece automática na consciência do adulto. Na realidade essa é uma leitura de configurações aferenciais – inputs sensoriais – operadas apenas na medida em que existam, no aparelho mental de quem percebe, determinadas funções, as quais precisamente tal leitura torne possível; e que é  justo em relação a esse tipo de funções elaborativas que se configura um determinado tipo de percepção. A fim de que tais funções operem é indispensável que no sistema mente estejam disponíveis unidades de leitura correspondentes: ou seja, certas “representações”. Se, como no infante, essas são de forma diversa daquelas que permitem as ditas percepções do real (na verdade uma percepção completamente e fielmente realística não existe nunca, nem mesmo nos adultos como demonstram os clássicos estudos da perceptologia baseados em ilusões ótico-geométricas), teremos uma leitura deformada; portanto uma percepção totalmente diferente; que, porém, não podemos chamar de anormal, enquanto fisiológica, e na idade evolutiva e na processualidade interna adulta.

A percepção  é um processo ativo, de montagem de todos os inputs  segundo certas configurações “construídas”  por funções correspondentes aprendidas progressivamente. Cada uma destas funções depende das precedentes e está conectada às subsequentes, em uma maneira funcional de “construção progressiva”.  Cada função é dada pela existência  de um traço: traços de funções, não de objetos; traços de programas funcionais, que operam em sincrônica sucessão em cada  ato perceptivo. Em relação às funções que tenham sido aprendidas e em relação às unidades de leitura que tenham sido armazenadas a disposição da função, teremos uma diferente leitura dos inputs e portanto uma diferente percepção.  Se temos em mente esse esquema, temos uma idéia melhor de como os objetos  internos descritos pela psicanálise são unidades de leitura para a percepção do mundo: é óbvio que esta percepção é totalmente “inadequada à realidade”, isto é, é totalmente diferente da do adulto: a leitura que resulta disso é totalmente sui generis. Devemos portanto nos despir do preconceito que perceber significa perceber o real; e que quando isso não acontece, algo estragou, ou interferiu, em mecanismos biológicos causando alucinações. O que chamamos de alucinação do recém-nascido é seu modo habitual de perceber.  O que deveríamos nos perguntar não é o porquê da alucinação, e sim como a criança maior pode chegar a perceber de modo adequado a realidade.

Em termos de simbolização, ou melhor, de simbolopoiese, a capacidade perceptiva é uma aquisição progressiva de símbolos e de modalidades de processá-los em relação aos inputs: é então adquirida progressivamente uma capacidade de fazer certas montagens, isto é, de ler de modos correspondentes (com correspondentes representações que funcionam como significantes para outros tantos significados), uma grande quantidade de inputs das mais variadas sensorialidades. Uma “análise da percepção” mais detalhada (vide outros trabalhos meus: 1994, pp.384-387; 1998, pp. 47-52 e 86-89) pode ser útil, não apenas como integração teórica entre psicanálise e outras ciências psicológicas, mas também, no meu modo de ver, para a própria clínica psicanalítica. Sobretudo para a compreensão de muitas patologias infantis, dos déficits intelectuais não orgânicos, e em geral, para todas as patologias consideradas provenientes de déficit, mesmo de adultos. Diz-se que as patologias provenientes de conflito estão desaparecendo, na população atual dos pacientes, com o crescimento da patologias provenientes de déficit, ou que, de qualquer forma, a patologia dos pacientes está mudando. No entanto, temos certeza de que foi a patologia que mudou ou, ao invés disso, o que mudou teria sido o modo de entender o funcionamento mental de quem sofre? Mais ainda, temos certeza que podemos falar de “quem sofre”, ao invés de “quem não consegue”?

Ou antes, falar de quem não conseguiu construir um funcionamento mental suficientemente comparável àquele que encontramos em outros, ou, pelo menos, àquele que seria desejável ou bom. Sou da opinião que uma visão construtivista da mente pode, não simplesmente ser integrada por outras ciências psicológicas, mas ainda fundamentada de forma especificamente psicanalítica. Em meu último texto, “Nascimento e Construção da mente” (1998) fiz esta tentativa.

  1. O inconsciente como “simbolopoiese”

A partir da perspectiva que tentei delinear, simbolopoiese parece ser todo o desenvolvimento mental, o construir-se progressivo de uma estrutura funcional capaz de elaborar, de forma específica para cada um, a experiência.  Uma  tal construção aparece, com maior evidência, em relação aos dois primeiros anos de vida, mas no entanto subsiste ainda nos anos subsequentes, por toda a vida do homem, até que o exercício do pensamento gere outras capacidades de pensar. Poderíamos dizer que simbolopoiese é o desenvolvimento do intelecto, sendo o que até o momento chamamos de desenvolvimento afetivo a base da inteligência: base condicionante, de cuja estrutura dependerá a qualidade da construção de todas as subsequentes.   Isto, não enquanto os afetos modulariam um processo de outra forma organicamente predeterminado, como no fundo parece nos induzir a pensar a formulação energética-pulsional, mas sim porque os afetos são as primeiras construções de funções mentais, as primeiras a serem aprendidas e a servirem de estrutura para as subsequentes. Dessa depende, o que, da experiência, será usado para a construção de todo o sistema mente.

Creio que possa ser útil para os psicanalistas falar de inteligência - e seria melhor talvez reintroduzir o velho termo intelecto - sob um novo vértice, diferente daquele velho-psicológico, a respeito do qual inevitavelmente falava Freud. Não existe motivo para separar afeto de cognição; essa distinção é relevante somente na consciência, lúcida, de um adulto; e, com freqüência, se faz necessário que esse adulto seja suficientemente culto para nota-la. Essa, portanto, aparece como distinção, talvez espúria, de dois epifenômenos distinguíveis somente em certas condições; quem sabe dependendo de que cadeias de significantes estejam prevalentemente operando, se as mais "basais" (diremos funções mais primitivas ou indiferenciadas?), ou as mais sofisticadas.

Não existe pensamento consciente sem pensamento inconsciente, nos faz ver Bion, nem mesmo para o cálculo algébrico, como nos sugere a sua grade. Apliquemos com profundidade esta intuição! O inconsciente então é o próprio pensamento humano, pelo menos em sua essência, e a totalidade do pensamento é simbolopoiése, portanto essa totalidade é inconsciente. Em algum "terminal" de alguma de alguma cadeia  simbolopoiética surge de algum modo a consciência: quem sabe com essa última cessa a simbolopoiese?! Talvez ela sirva para se ver, retrospectivamente, algum fragmento da simbolopoiese a qual percorremos. Quanto mais presente for para nós que o nosso pensamento, a própria mente, são inconscientes, menos teremos necessidade de usar o adjetivo "inconsciente". Quanto ao que chamamos de consciência, se nos dermos conta do quanto funcionamos sem tomarmos consciência dela, tanto menos teremos necessidade de nomeá-la.

Podemos novamente nos perguntar por que a consciência emerge: ela é o instrumento que permite ao ser humano refletir sobre si mesmo: "olhar-se". .A pergunta a respeito de como ela surge pode nos levar, no entanto, a indagar melhor a respeito da progressão simbolopoiética. Existem sujeitos muito capazes de olhar para dentro de si, e outros que revelam-se quase que inteiramente incapazes de faze-lo. Já lembrei o conceito de alexitimia. Falamos de sujeitos muito "defendidos": poderíamos melhor nos interrogar a respeito da natureza das defesas se, abandonando os esquemas teóricos usuais, as pudéssemos enquadrar sob uma perspectiva de cadeias simbolopoiéticas. Em alguns indivíduos a capacidade de olhar para si próprio é setorial: uma pessoa pode ter ricas capacidades introspectivas mas ser cego e surdo para algumas de suas áreas. Definimos essas áreas como cindidas: o que ocorreu no desenvolvimento simbolopoiético? Pode essa questão nos levar a formular diferentemente o conceito de cisão e, de um modo mais amplo, o de defesa?

Esse último conceito, na verdade, liga-se a uma concepção dinâmica dos afetos. Defendemo-nos com uma força de uma outra força que nos ameaça: estamos frente à assunção do conceito de força como basal. Estamos pois na psicodinâmica e, portanto, no modelo pulsional. Como teoria explicativa,  a energética-pulsional resultou não demonstrável: como modelo, heurístico, ela ainda nos é útil? Como metáfora para a clínica? No modelo existe todavia a idéia de "forças" em oposição entre si: essa idéia nos é útil em nossa profissão?

Temo que, nesse ponto, alguém possa exclamar: "Em suma, se acabamos com os conceitos de conflito, de defesa, de recalque, o que sobra da psicanálise?" E mesmo assim, a psicanálise é depois de cem anos muito mais do que o conjunto da totalidade desses conceitos aos quais estamos tão apegados. Falar  do despedaçamento dos conceitos fundamentais da psicanálise, como já me ocorreu ouvir, soa então como uma heresia. Há décadas, autores ilustres, depois de haverem criticado a teoria pulsional, propuseram uma "psicanálise sem psicodinâmica" (Schaefer, 1975). Ver a esse respeito a bela resenha organizada por Fabozzi e Ortu (1996).

Vamos tentar levar em consideração aquilo que até agora enquadramos como conflito, defesa, repressão (6) e também cisão, em um esquema diverso: no da simbolopoiese, tal como descrita aqui. Nas cadeias e nas redes dos significantes nas quais cada um deles gera outros ulteriores (poiesis), podem verificar-se transformações  que aumentam o poder significativo - portanto, de certa forma, o "sentido' do sistema -, a sua eficiência, a sua continuidade, a sua capacidade de produzir símbolos ulteriores, e outras que, ao contrário, lhe diminuam o sentido, o confundam, pervertam os significados com significantes aparentemente contínuos, que criem fraturas, hiatos, contradições, diminuições de ritmos, paradas; e isto em todo o sistema de significação interna. Isso parece pouco aos psicanalistas? Os ratos enlouquecem, se imersos em um sistema contraditório: por que os homens não haveriam de  enlouquecer? A contraditoriedade  na comunicação interpessoal, sobre a qual muitos  autores da Escola Sistêmica escreveram, e por vezes até alguns psicanalistas, o contraste entre mensagens opostas (mensagem e metamensagem) da qual fala a Pragmática da Comunicação Humana, são altamente patógenos: enquanto, segundo penso, cultivam e contagiam uma potencial contraditoriedade interior, inserida no desenvolvimento das cadeias e das articulações da simbolização progressiva; elas introduzem "mentiras" na simbolopoiese, zonas isoladas da rede de comunicação intrapsíquica (cisões), que fazem dar um tilt nesse enorme e maravilhoso computador que é o Sistema-Mente. Esses "defeitos" na construção simbolopoiética, ou então da estrutura mental, podem fazer com que partes inteiras do sistema se obscureçam, permaneçam isoladas, ou desapareçam, como em um computador se destroem programas inteiros; que aconteçam eventos que podem ser definidos como implosões, autocanibalismo (termo usado por Bollas) ou, segundo a expressão introduzida por mim, e que continuei a usar, a de autotomia (auto-tomos, en etimologia)

Creio que podemos deixar de lado o conceito de recalque: este parece exclusivamente teórico, e além disso, ligado a uma teoria que não é mais útil. Resistência, no entanto, é um conceito clínico. Os de conflito e defesa estão a meio caminho, entre a clínica e a teoria. Dentro de um enfoque teórico diferente, não poderíamos concebê-los em termos de contradições de um sistema de significação? E a defesa, ou melhor se permanecemos na clínica, a resistência não pode ser concebida como  a dificuldade intrínseca de uma construção mal-feita que necessita ser "re-estruturada"?

Já lembrei como Bollas sublinhou, na análise do conhecido não-pensado, a necessidade que o paciente tem, de "evitar uma consciência prematura": e de experimentar antes disso novos estados de ser. A consciência portanto não é aquela estrutura que se alcança se retiramos os obstáculos que imaginamos com a teoria do recalque. A construção simbolopoiética que estamos refazendo com a análise deve respeitar uma sua processualidade gradativa, começando pela construção das estruturas mais elementares.  É impossível dar-se conta (ou esse dar-se conta é "falso") se as várias passagens de nível, são descontinuas ou mistificantes; não se pode chegar a observar o conhecido não pensado se antes não se construiu, através da re-experimentação de estados de ser, um espaço interno para pensar. Também faz pouco sentido classificar esse mesmo espaço como inconsciente. A necessidade de evitar uma consciência prematura, indica, a meu ver, o fato, intrínseco da progressão simbolopoiética,  que cada significante construído deve estar em continuidade com os precedentes e com os sucessivos. Ou então poderíamos ter aquelas análises nas quais o paciente ter aprendido todos os insights possíveis, teoricamente, mas infelizmente não muda. A descontinuidade e as contradições constituem e explicam a patologia, assim como falsas passagens, verdadeiros saltos na progressão simbolopoiética, estão na base de certas patologias, perversas, ou de falso self, ou iatrogênicas provenientes da análise. Talvez a noção de contrariedade dentro do sistema de significações, ou a de interrupção, de "buraco", de vazio, nos parecem insuficientes para entender certos acontecimentos patológicos, a fim de que as confrontemos com o mito fascinante das forças infernas (infernas, não simplesmente internas) personificadas pelas pulsões. Creio que tal sub-avaliação das incongruências se deva ao fato que a mente adulta (relativamente "sã") esteja habituada a intelectualizar a contradição, a esterilizá-la, separando-a do vivido. Quem a vive, no entanto, sem se dar conta, é justamente aquele que está psiquicamente mal: o indivíduo patológico; que muitas vezes também é logopático  – se nos atemos à etimologia – sofre porque não pode nos dizer o quanto sofre. Conseqüentemente nos custa entendê-lo, ainda mais se não tivermos um certo equipamento para tal.

Aquilo que, a partir da clínica, inferimos como conflito,  é talvez o nosso modo mais fácil de dar forma compreensível à contrariedade dentro do sistema protomental. Presumir o desenvolvimento mental como simbolopoiese e o funcionamento mental como atividade do sistema de significações instituído neste construto, quer dizer, a meu ver, dispor-se a escutar, entender, inferir, seguir as articulações dos significantes, daqueles protomentais principalmente, e de vislumbrar as passagens de uma "má construção". Quer dizer, a meu ver, enfocar por que motivo a capacidade de um indivíduo  de olhar para dentro de si pode ser tão variada, diferente, descontínua: dizendo em termos antigos, captar os meandros do inconsciente. Através da resistência? Usando um conceito mais abrangente, apropriado ao nosso enfoque,  como aquele denominado por mim de "permeabilidade intrapsíquica"  (1983), poderíamos reformular a resistência como dificuldade, maior ou menor dos indivíduos, de ser impermeáveis a que significantes mais indiferenciados entrem em contato com os sucessivos. O tipo de progressão simbolopoiética pode dar origem a construções de sistemas nos quais cada significante está em continuidade, quase em contato, com o ulterior, e outros, ao contrário, nos quais existem fraturas, descontinuidades, segregações, reviravoltas de significado. Creio que entre essas duas polaridades se coloque o grau com o qual um indivíduo pode ser mais ou menos, ou setorialmente, permeável; ou capaz de olhar para dentro der si: e, em contrapartida, o grau em que o analista pode ser ele mesmo, e nessa medida ajudar o paciente a se tornar também ele mais permeável.   Isso ocorre na medida em que o analista tem a sua disposição uma bagagem suficiente idônea para entender, melhor do que o paciente, a impermeabilidade, vale dizer, para captar melhor as passagens da simbolopoiese nas quais o paciente "não conseguiu", nas quais ele "sofreu", e através das quis ele se tornou "logopático".

Do ponto de vista do paciente, através da capacidade de olhar para dentro de si (digo,olhar-se, não ver) entendo não tanto o dar-se conta dos significados dos quais antes não se dava, (esta pode até ser uma "construção" posterior, que por outro lado corre sempre o risco de ser condescendência verbal com as "palavras" do analista), e sim um aumento de sua comunicação intrapsíquica da qual não se dava conta. Trata-se de algo que eu me sinto aproximar daquilo que Bollas (1992) chama de "elaboração do idioma", referindo-o ao "estado de ser", encontrado no analista bem equipado (contratransferência) e, desta forma, capaz de tornar o próprio paciente capaz de elabora-lo. Talvez, na medida em que um analista é capaz de trabalhar a permeabilidade intrapsíquica, a sua própria e a do paciente, poderá ser capaz de diminuir os riscos de um prematuro e excessivo dar-se conta verbal (que mencionei acima), e chegar a momentos geradores – criativos – ("criação", descreve Bollas, como o negativo do trauma) da análise; aqueles momentos nos quais, para além das palavras, das interpretações e do dar-se conta, o paciente se transforma, e se encaminha para a geração de um movimento, e de uma mutação analítica fundamental; e talvez, eu poderia arriscar a dizer, a regenerar um novo gerador simbolopoiético.
Notas:

(1)    Permanece na nossa cultura, mesmo na científica, a errada e absoleta concepção do aprendizado entendido como um imprimir-se da experiência sobre uma estrutura biológica, concebida como uma chapa fotográfica. Permanece igualmente a idéia que o traço mnêmico seja, ele também, um tipo de reprodução do acontecimento ou dos objetos percebidos e que isso se conserve quase que estaticamente. Tal concepção (conforme o princípio da constância de Katz; conforme também Imbasciati. 1994, 1998) vê a mente como uma espécie de aparelho fonofoto-reprodutor. Ao contrário, a aprendizagem é um processo ativo operado pelas funções mentais constituídas num dado momento, cuja resposta psicofisiológica corrobora o aprender “através” da experiência da memória bioniana: não se aprende da experiência em quanto tal, masatravés dela, na medida em que as funções mentais ativas naquele momento – ou seja, as funções por sua vez aprendidas – o permitam. As afirmações bionianas se tornam bem  mais claras com os estudos da psicologia experimental. Assim também o traço mnêmico é o resultado, em contínuo remanejamento (uma reserva funcional, dinâmica ao invés de um lugar de estocagem), das aprendizagens. As próprias funções mentais, e portanto as funções de simbolização, são aprendidas: traço agora, significa sobretudo traço de funções mentais.

(2)   Fica em aberto a questão de como se dá a primeira aquisição de qualquer função  que seja, que possa permitir, posteriormente, usufruir da experiência para construir as funções que se seguem (Imbasciati, 1994, 1998). Quanto ao “quando”, estamos certamente no período fetal.

(3)   Além do que, devido a ignorância a respeito dos processos cognitivos primários, atribuídos simploriamente às propriedades intrínsecas da estrutura biológica. A assim chamada  maturação neurológica é fruto da experiência: a aprendizagem incide não só sobre a estrutura funcional como também sobre a anatômica; a estrutura histológica do cérebro depende das aprendizagens.

(4)   Sobre estes argumentos a discussão é muito mais complexa do que se poderia resumir em um artigo. Sugiro alguns dos meus textos: 1991, 1998.

(5)   Talvez seja oportuno apontar para o fato de que, além da acepção científica de percepção, como até em nossa linguagem especializada, se continue a usar o termo percepção mesmo na acepção da língua italiana que a refere à introspeção e à intuição, sendo que esta última acepção está totalmente fora da linguagem das ciências psicológicas.

(6)   George Klein definiu (1976) a repressão como “estrutura afetiva-cognitiva cindida que exerce uma influência seletiva no comportamento.

Resumo

Considerando os estudos a respeito do desenvolvimento mental primitivo do bebê, o autor propõe uma comparação de alguns conceitos psicanalíticos com  dados provenientes das ciências cognitivas, e coloca uma série de questões sobre qual possa ser, hoje, o conceito de inconsciente. O autor tende a demonstrar como muitas das teorias psicanalíticas são mantidas pela tradição e não por uma efetiva e atual utilidade clínica. As questões e suas respectivas argumentações convergem para apontar a essência do inconsciente em um continuum de processos simbolopoiéticos (produções simbólicas) ao cabo dos quais pode se manifestar a função que chamamos de consciência. Dentro deste enfoque o autor prospecta uma revisão de muitos conceitos psicanalíticos tradicionais e a necessidade de que os psicanalistas esclareçam suas teorias, seja no confronta-las com outras ciências, seja no trabalho clínico, seja com o objetivo de uma melhor utilização das descobertas psicanalíticas das últimas décadas. Além disso o autor propõe um esboço teórico próprio para enfocar as origens e as "construções" do sistema mente.

Resumo

Considerando os estudos a respeito do primitivo desenvolvimento mental do bebê, o autor propõe uma comparação de alguns conceitos psicanalíticos com  dados provenientes das ciências cognitivas, e apresenta uma série de questões sobre qual poderia ser, hoje, o conceito de inconsciente. O autor tenta mostrar como muitas das teorias psicanalíticas são mantidas pela tradição e não pela efetiva e atual utilidade clínica. As questões e suas respectivas argumentações convergem para apontar a essência do inconsciente em umcontinuum de processos simbolopoiéticos (produções simbólicas) ao cabo dos quais pode se manifestar a função que chamamos de consciência. Dentro deste enfoque o autor propõe uma revisão de muitos conceitos psicanalíticos tradicionais e a necessidade de que os psicanalistas esclareçam suas teorias, seja no confronta-las com outras ciências, seja no trabalho clínico, com o objetivo de uma melhor utilização das descobertas psicanalíticas das últimas décadas. Além disso o autor propõe um esboço teórico próprio para enfocar as origens e as "construções" do sistema mente.

Summary

Taking into consideration studies on the primitive mental development of babies, the author proposes a comparison of some psychoanalytic concepts with data from experimental cognitive sciences. He poses a series of questions as to our current concept of the unconscious. The author tries to show how many of our psychoanalytic theories are preserved for traditional reasons, not for their current effective clinical utility. The questions and their discussion tend to converge to pointing out the essence of the unconscious in a continuum of symbolic productions ( simbolopoiesis), at the end of which there may sometimes appear the function that we call conscience. In this context, the author proposes a revision of many traditional psychoanalytic concepts and points out how psychoanalysts may usefully clarify their theories, whether by confronting them with other sciences, or in their clinical work, with the objective of better utilising the psychoanalytic discoveries of the last decades. Furthermore, the author proposes his own theoretical outline, by which to focus on the origins and the construction of the mind-system.

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